As artes circenses são commumente encaradas apenas como entretenimento. No entanto, para muitos é forma de aprender, expressar e não morrer. O circo não faz distinção de sexo, género ou idade. Dos mais novos aos mais velhos, há sempre uma lição de transformação, inclusão e superação.
O circo permite-nos criar um imaginário. Por vezes, pensamos em cenas mirabolantes de leões e elefantes em tendas gigantes, rodeados de pessoas extasiadas ou, simplesmente, num palhaço. Pensar em "circo", é, em muitos casos, sentir o calor e conforto de uma memória, talvez, nunca vivida de cores, despreocupação e diversão. A verdade é que o circo faz-nos sentir aquilo que no nosso quotidiano, muitas vezes, se esquece. Faz-nos sentir na pele os arrepios, as borboletas na barriga e a emoção de nos sentirmos vivos.
"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" e também o circo. Já não é permitido o uso de animais - desde 2019, em Portugal, pelo menos -, mas ele foi capaz de se reinventar. Ao longo do tempo foi evoluindo, mas o combustível continua a ser o mesmo, a paixão. Foi enriquecendo a sua arte de ser "circo" e manteve sempre o fator surpresa, o extraordinário que nos faz transcender.
Quem já não ouviu falar de P.T. Barnum ou viu o filme de sucesso The Greatest Showman? Gordos, magros, altos e baixos que aos olhos da sociedade eram aberrações, pessoas que de algum modo não se encaixavam no padrão social, encontraram, no circo, uma família e uma casa. Desde os seus primórdios, o circo é uma arte marginal. Foi, e continua a ser, um lugar para todos.
As artes circenses têm acorrentadas a elas, uma série de preconceitos. Por serem, em grande parte, encaradas apenas como entretenimento, estão associadas a ideias de despreocupação e, numa perspectiva mais radical, de imprudência. Esta cruz de estigmas descredibiliza e limita o seu potencial de transformação e a sua visibilidade na sociedade.
De acordo com as Estatísticas da Cultura (2022), as receitas provenientes do circo representaram cerca de 0.7% de todo o capital gerado pelos espetáculos ao vivo. Quanto aos espectadores, também não está entre as áreas mais populares.
Se este é um setor pouco expressivo, porquê tentar aqui a vida?
Seguir o próprio sonho, procurar ser feliz ou cumprir o seu propósito é, hoje em dia, um ato de coragem, não importa a idade.
"Mais do que formar artistas de circo, nós queremos formar pessoas"
Rodolfo Correia, educador de circo
Está um dia de sol em Braga e hoje, o circo vai chegar numa carrinha de três lugares.
São 14 horas e as crianças já se fazem ouvir. Uma e outra, mais outra e, no final, já se perdeu a conta de quantas estão à volta do professor Rodolfo, à espera que a funcionária venha abrir o ginásio.
O entusiasmo e curiosidade logo revela-se ao vermos as mochilas, os sapatos e os casacos esparramados pelo chão junto à parede.
Posicionados os trampolins e os colchões, é hora de começar. “Tudo para dentro do círculo, tudo para dentro do círculo!” pede o professor. Uma das crianças faz a contagem: “cinco, quatro, três, dois, um…”
Enquanto anda à volta do círculo, Rodolfo dá instruções para o exercício de aquecimento. “A bola vai passar e vocês têm de fugir. Não se podem empurrar, nem podem sair do círculo. Quem tocar na bola, vem para fora e vai lançar comigo. Perceberam? Quem acabar ganha um tremoço.”
Entre risos, gritos, saltos e “batotas”, o círculo vai ficando cada vez mais vazio e pequeno. “Vá lá, faltam dois” , incita o professor. É chegado o derradeiro momento da decisão, quem vai ganhar o tremoço? “Dez, nove, oito, sete, seis…” Antes mesmo do campeão acabar de receber a salva de palmas dos colegas, todos saem dispersos a correr.
Rapidamente, uns estão com cordas, hula hoops e bolas. Outros em fila indiana à espera da sua vez para dar o seu salto mortal. Ao tentar equilibrar um prato cor de laranja, um dos alunos pede: “professor, pode me ensinar como é que se faz assim?”, enquanto gira com a mão para demonstrar.
As grandes sensações desta tarde são: a lira, o trapézio e os tecidos acrobáticos, todos se querem empoleirar. O menino de camisola vermelha pede ajuda para subir no trapézio. O professor ensina como deve fazer e, com as mãos, apoia o movimento do aluno. “Tens de levantar os braços, posicionar as mãos à largura dos ombros e depois saltar.” Salta uma e duas vezes, mas só à terceira consegue agarrar-se. O universo gira a 180 graus, quando o menino troca os pés pelas mãos. Mais tarde, este menino vai seguir o exemplo do professor e ajudar outra criança a virar o mundo de pernas para o ar.
De repente, ouve-se: "professor!" Um dos alunos era o portador da má notícia, rebentaram uma bola de malabarismo. Já lhes era sabido que não era para brincar com aquela bola, mas "o fruto proibido é o mais apetecido" e as consequências eram inevitáveis.
Lá fora, a brisa leve e silenciosa, cá dentro a energia é contagiante e a euforia ecoa. É assim que é passada esta tarde. Já são quase 15h30, é hora de arrumar o material para ir embora. Todos já sabem o que fazer. De sapatilhas calçadas, de mochilas às costas e telemóvel na mão, as crianças vão saindo para voltar ao normal.
Aquelas quatro paredes amareladas foram, mais uma vez, a plateia do espetáculo de umas quantas crianças que correram e brincaram despreocupadas e desconectadas. Aquela hora e meia offline foi, em muito, online para a vida. A alegria fez-se com “pouco”, de pés descalços e meias furadas.
A escola EB 2,3 de Lamaçães, em Braga, é apenas uma das escolas intervencionadas pelo projeto Equilibrium. Atualmente, são abrangidos seis agrupamentos, na cidade de Braga, dois em Vila Nova de Famalicão e ainda algumas parcerias com associações, como a Associação Nacional para o Estudo e a Intervenção na Sobredotação (ANEIS), onde trabalham com autistas, com PHDA (Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção) e sobredotação.
Este projeto tem como objetivo a prevenção de problemas de comportamento e, recentemente, conseguiu “afunilar a sua intervenção para trabalhar na prevenção do uso nocivo das tecnologias". É através da implementação das ferramentas e técnicas de circo que procuram desenvolver competências emocionais, psicomotoras e cognitivas em crianças desde os seis aos 18 anos “e prolonga-se um bocadinho mais”, explica o professor.
Rodolfo Correia acumula umas quantas valências, é psicoterapeuta, mediador intercultural e educador de circo, porém é conhecido pelas crianças e adolescentes apenas como “professor”.
A psicóloga do Centro de Solidariedade de Braga/Projecto Homem (CeSB/Projecto Homem) - entidade promotora do Projeto Equilibrium Social Circus -, Marta Alves, afirma que este trabalho “surgiu como uma necessidade de trazer uma resposta diferenciadora e inovadora, que saísse fora da caixa daquilo que é habitual no trabalho com crianças e adolescentes com comportamentos de risco ou com problemas de comportamento no seu processo de desenvolvimento, nomeadamente, na adolescência.” Por meio de uma metodologia informal, que “quebra um bocadinho o método tradicional”, as crianças e adolescentes são capazes de, “a par do desenvolvimento das suas competências físicas e motoras, fazer também um desenvolvimento das suas competências pessoais, sociais e emocionais.”
A psicóloga enfatiza que são notórias as mais valias, principalmente ao nível dos processos de autoconhecimento e de definição de identidades, que podem enfrentar “algum tipo de barreira, de estigma e de preconceito” quanto aos comportamentos entre os mais jovens.
Perpetua-se um sentimento de pertença, de apoio mútuo e de escolha, que transformam este ambiente descontraído num espaço onde o processo de mudança acontece numa “simbiose perfeita”, sublinha Marta Alves.
Essa mudança não se circunscreve apenas ao momento das atividades. Rodolfo Correia relata que os alunos são eles mesmos os agentes de transformação, quer com os mais novos ou na própria sociedade, “o que faz com que desmistifiquemos um conjunto de ligações que existem ao circo. Por exemplo, os pais quando veem um artista na rua, já analisam e veem de outra forma. Quando veem um artista nos semáforos, já olham de outra maneira.” O educador de circo salienta ainda que o principal objetivo do projeto é desmistificar a ideia de que o circo é para os “freaks” e para a “malta alternativa”. “O circo é um bocadinho mais do que isso. O circo é uma ferramenta pedagógica e educacional.” Afirma ainda que o circo pode ser uma oferta complementar na escola, como é a cidadania, “eu consigo trabalhar a cidadania através do circo e não é tão chato como estar sentado a olhar para um professor a falar, é mais divertido.”
Porque é que o circo é a ferramenta?
Para Rodolfo, o circo conjuga três aspetos importantes: “é uma ferramenta lúdica, artística e física. Precisas da parte lúdica para te divertires e para estares num estado de êxtase tranquilo. A parte artística, porque mesmo que sejas de contas, há sempre ali qualquer coisa artística, isso vai te despoletar a criatividade. E, depois, tens a parte física. O circo supera-te, ou melhor, faz-te atingir os teus limites, leva-te ao ponto em que queiras superar a ti próprio. Por isso, para mim, é a fusão perfeita.”
O professor aponta que “nem todos são artistas de circo e não é esse o objetivo.” O circo alia “todas as artes: teatro, música, dança, ginástica acrobática…” No entanto, “precisamos de todos para montar um espetáculo.” Para o educador, a chave é olhar para cada um como um ser individual, com características singulares, “não somos todos iguais.” Daí, ser igualmente importante o artista de circo e o indivíduo que gosta de trabalhar a iluminação. “Para mim, é tão importante a pessoa que mete o som, como o artista que vai fazer para o trapézio. Todos são importantes. Neste trabalho conseguimos que haja essa transformação.”
Esta transformação está intimamente ligada ao conceito central do projeto: circo social. Para Rodolfo, “é muito simples. Eu costumo dizer que mais do que formar artistas de circo, nós pretendemos formar pessoas.”
A mudança aconteceu numa "via de mão dupla". A responsável pela coordenação e gestão de projetos de inovação social do projeto, Sara Leite, afirma que "houve um shift muito importante."
O Equilibrium Social Circus é hoje "um projeto essencial do Projecto Homem." Sara Leite conta que o circo contribui para mudar a imagem da instituição. "A instituição esteve desde sempre, desde os anos 90, ligada à questão dos comportamentos aditivos, sobretudo as substâncias ilícitas. Quase todas as pessoas associavam o Projecto Homem a drogas e a uma imagem muito estereotipada. Desde esta incorporação do circo, houve uma associação da instituição a uma nova forma de trabalhar mais leve e informal, de educação pela arte."
“Ó moço, tu tens jeito é para palhaço!”
Rodolfo começou desde muito novo “a fazer umas bolinhas, a tocar um djembé e a cuspir fogo.” Com os amigos, ia aprendendo novas técnicas e passando conhecimento uns para os outros. “Não venho de uma família de circo. O meu pai era bancário e a minha mãe era cozinheira, não tem mesmo nada, nada, nada a ver”, ressalta.
O circo sempre foi uma paixão. Conta, “lembro-me da minha mãe dizer: “ ‘ó moço, tu tens é jeito para palhaço’. Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes e cheguei ao ponto em que lhe disse “mãe, vou para palhaço”, ela quase que tinha um ataque cardíaco.” E continua, “depois mostrei que é uma arte, é uma profissão digna de toda a gente.”
Porém, numa das adversidades da vida, viu-se “perto do fundo.” Explica que passou por uma fase muito difícil quando os pais faleceram. “O meu pai morreu num dia e a minha mãe morreu no dia a seguir, no funeral dele. Foi uma fase mais down, isto é, a nível de experiências que poderiam ter sido complicadas.”
Na altura, Rodolfo tinha uma companhia de teatro e circo, onde 60 pessoas trabalhavam ao seu lado. “A responsabilidade de pôr esta malta toda a trabalhar e de ter de pôr as coisas a rolar” fez com que ele não se “perdesse ou não batesse no fundo, como se costuma dizer. Passei lá perto, mas não bati. Esta responsabilidade que tinha a ver com o circo ajudou-me, o circo ajudou-me.”
Recorda o tempo passado num café com os amigos a fazer malabarismo de auscultadores, “estava no meu mundo completamente fechado, era como se não estivesse com ninguém.” Esses momentos levaram a que fizesse uma introspecção àquilo que tinha vivido e ao que ainda estava a passar, “isso acabou por me ajudar a não cair totalmente.”
De entre todas as voltas que a vida deu, sempre esteve de alguma forma ligado ao circo, seja a nível de espetáculos ou numa parte mais social, “desde a minha prova de aptidão profissional, que foi foi sobre circo também."
Relembra também o tempo em que dava aulas e trabalhava como técnico especializado no Bairro do Aleixo, na Pasteleira, nas Condominhas, no Lordelo e Pinheiro Torres, “era uma escola super complicada, onde havia tráfico de drogas lá dentro, onde partiam tudo, eram muito complicados. Conseguimos dar a volta àquilo, através da arte. Consegui que o Ministério da Educação nos financiasse a parte do circo. Entretanto saí, porque o objetivo da escola era outro, mas sempre estive ligado ao circo.” Foi aí que Rodolfo percebeu que o seu propósito é ajudar as pessoas, “então aliei a minha área de formação, continuei cada vez mais a especializar-me e tirei um mestrado em Mediação Intercultural e Intervenção Social.”
Hoje, ensina e orienta “estes miúdos para que eles possam crescer, mas, acima de tudo, para que sejam melhores pessoas”.
Tão importante quanto a ideia de circo social é o conceito de família, que é também um dos pilares do projeto. A família é o alicerce desta casa que é o circo e para o professor é imperativo que os alunos sintam que estão num ambiente seguro, pois só assim é possível estabelecer laços de confiança.
O apoio dos pais é um elemento chave em todos os setores da vida e, no circo, não seria diferente.
"Quando estou a treinar, ali horas e horas, mesmo todo suado e ofegante, o corpo não quer parar, o cérebro está mesmo limpo, mesmo vazio"
Carlos Pinto, artista de circo contemporâneo
Carlos Pinto conheceu o circo graças à mãe. Melhor dizendo, a mãe meteu-lhe ali o bichinho quando inscreveu-o, ainda criança, para aprender capoeira. Da capoeira, para "artes urbanas, depois para a dança contemporânea, teatro, música e circo". O aluno do 2º ano do Instituto Nacional de Artes de Circo (INAC) conta que "foi uma mudança muito grande". A arte surgiu como forma de colmatar os problemas de autoestima e de se "enturmar com as pessoas". Acrescenta ainda, "abriu-me as portas do mundo. Com o circo consegui integrar-me na sociedade de uma forma mais fácil, mais flexível."
Recorda que, em mais novo, comparava-se às outras crianças, "ver as outras crianças a correr atrás de uma bola e não conseguir fazer o mesmo era muito difícil." O jovem de 23 anos diz que foi muito importante o sentimento que descobriu quando entrou no mundo das artes, foi "sentir que tenho capacidade de fazer alguma coisa. Hoje, com a capacidade de fazer acrobacias e coisas mesmo malucas, sinto que com o circo dá para mudar vidas."
Para o cabo-verdiano, o circo é a capacidade criativa que o ser humano tem para expressar os seus sentimentos." O sorriso é inevitável quando confessa: "o circo tira-me de mim, tira-me deste mundo. Quando estou a dançar ou a fazer acrobacias coloco os auscultadores e fico ali a viajar."
Carlos está a fazer especialidade de mastro chinês, "eu gosto muito, mas é muito difícil para mim", admite. Conta ainda que no INAC está a aprender a "técnica do circo bem linear". No entanto, veio de uma "técnica de rua que é mais estar naquela energia, naquela vibe e executar o movimento."
Atualmente, Carlos está a trabalhar com Clara Andermatt, foi o único aluno do INAC que passou na audição com a coreógrafa. "Já conhecia o trabalho dela. Ela é muito admirada no público cabo-verdiano como artista, como criadora. Estar aqui a trabalhar com ela, fazendo circo, fazendo dança, uma coisa que eu gosto muito, estou a trabalhar naquilo que gosto e a aprender com aquilo que gosto. Está a ser uma oportunidade mesmo extraordinária, que com certeza vou levar esta experiência para a vida." O espetáculo chama-se MUDA e "é uma mistura de dança contemporânea e artes circenses." Estreia a três de maio em Aveiro "e vamos ter várias agendas por Portugal inteiro", conclui.
À semelhança de Carlos, o apoio familiar também foi decisivo para Inês Silva.
A jovem de cabelos azuis recebeu o diagnóstico de autismo "com uns três, quatro anos, relativamente cedo para uma mulher com esta condição", explica a sua irmã, Maria Telheiro. Conta que a Inês trouxe a ela e à família "uma forma muito diferente de aprendermos a lidar com as outras pessoas, aprendermos o que é lidar com certos entraves no nosso dia a dia que talvez nós não pensaríamos se não tivéssemos alguém tão perto de nós com autismo".
A mãe teve um papel preponderante, pois "desde cedo reparou que havia algo de diferente. Ela lutou muito nestes pequenos 18 anos que a Inês tem para que houvesse um diagnóstico, para que houvesse a integração dela", completa. No entanto, afirma que a sociedade "não está preparada para receber casos diferentes do que acha que é normal."
Um cadeirão castanho é o companheiro de ensaio de Inês Silva. Entre caretas e movimentos um tanto "anti-natura", a jovem de 18 anos faz a sua performance. A aluna do ano técnico do INAC refere que tem algumas dificuldades em expor o que sente através de palavras, "mas com o circo consigo expressar-me de uma forma mais livre e confortável."
O circo surgiu como uma forma de desafiar-se, "aprendi a interagir melhor com as outras pessoas, a respeitar o meu processo de aprendizagem, a valorizar mais as minhas conquistas e a reconhecer o meu esforço", confessa. Com um olhar tímido, Inês conta que descobriu que tem potencial para a contorção, "isso faz-me sentir especial."
A irmã acrescenta que o circo teve um papel decisivo para a inclusão da Inês, pois "foi o sítio onde ela mais se sentiu aceite como pessoa, como ser humano sem qualquer tipo de obstáculo ou olhar de lado pelas diferenças que ela tem."
"Costumo dizer que somos a típica família portuguesa, onde toda gente se junta para tomar decisões. Nunca foi uma coisa posta de lado quando a Inês disse que queria fazer circo. Depois quando nós, enquanto núcleo familiar, percebemos que realmente pudesse ser uma coisa que ajudasse a Inês a evoluir, ainda mais aceite foi na nossa família", diz Maria.
"Se não fosse o circo, hoje em dia, a Inês não teria tido a evolução que teve como pessoa, como mulher. Ela é cada vez mais consciente das coisas que o circo lhe traz e dos benefícios que lhe dá para ultrapassar os obstáculos do dia a dia", conclui a irmã.
Além de ser um agente de transformação, o circo é um agente de inclusão, sempre o foi. Gordos, magros, altos e baixos, novos e velhos, as artes circenses ensinam na prática a superação.
"Venho-vos fazer um convite em jeito de desafio. Sei que vos estou a convidar para uma coisa que não é muito normal e sei que vocês vão achar isto muito estranho", era este o mote de Alexandra Espiridião na sua caça a participantes.
A coordenadora da Trupe Sénior - um dos projetos do Chapitô - conta que no início, em 2015, havia muita descrença e estigmas na realização do projeto, "sempre que eu dizia o que eu estava a fazer, toda a gente se ria".
Refere que as atividades que existiam para seniores nessa altura "eram muito pouco fora da caixa. Eram uns cavaquinhos, aulas de pintura, coisas que realmente são bastante interessantes, mas que estão dentro de um universo mais ou menos confortável. A Trupe Sénior surgiu com esse legado. Estamos a desafiar estereótipos de envelhecimento."
Afirma que "era preciso que as pessoas se dessem a possibilidade de sentir prazer. Esta geração é a geração dos empreendedores." Muitos deles "nasceram muito pobres", não têm escolaridade, "como as pessoas que estão aqui" e trabalharam a vida toda à volta do: 'eu vou conseguir sair da pobreza, eu vou conseguir dar uma vida boa aos meus filhos, eu vou conseguir ter uma casa'. De facto, conseguem, são uns vencedores." Esta geração esquecida que construiu o nosso mundo "não tem de estar guardada em casa", reitera.
É no edifício da União Geral de Trabalhadores (UGT), em Lisboa, que às quintas-feiras, das 14h30 às 16h30, um jovial grupo de séniores reúne-se para "voltar aos tempos de meninice", como recorda ternurentamente Luísa Mendonça, uma das integrantes da Trupe Sénior.
Está um dia de sol e, ao invés de se reunirem no refeitório como é habitual, vão para o jardim. Hoje não há ensaio, só convívio. Uns atiram-se para o chão, outros ficam-se pelas cadeiras. Conversa vai, conversa vem e todas vão levar ao mesmo: o circo.
Às vezes, um ou outro distrai-se com o telemóvel, mas rapidamente voltam à conversa quando alguém "se mete" com eles.
Maria Alice Costa, de 78 anos, regressa à trupe, depois de três meses no Brasil, com a famosa caixinha de bombons amarela "Garoto". Com entusiasmo distribui o "miminho" aos companheiros da trupe.
Recordam bem-dispostos os espetáculos que mais gostaram. Luísa Mendonça, de 77 anos, conta que a sua vida era "de casa para o centro de dia e do centro do dia para casa." "Sentia-me velha e sentia-me incapaz de fazer sei lá fosse o que fosse. Entrar para o Chapitô e fazer estas palhaçadas faz-me sentir sempre jovem. Só aqui é que podia fazer essas coisas, não ia fazer isso no centro de dia ou em casa. Fiz de homem, fiz de palhaça, fiz de tudo."
Partilha orgulhosa a vez que, num espetáculo de Natal, abriu o casaco "e tinha as minhas mamas a brilhar." Com a camisola levantada par mostrar o soutien admite: "pronto, por acaso hoje não é muito bonito. Mas a ideia foi da Alexandra, ela entrou e disse: 'é pá tens sempre uns soutiens tão bonitos, mostra lá'. Elas estavam atrás de mim e eu à frente para o público [abria o casaco] fazia tcharan! Ai, foi tão giro." Por fim, conta que sente-se cansada, "mas vou ver se dou a volta a isto." "Tens de tomar umas pastilhas", diz uma das integrantes da trupe, enquanto pisca o olho à companheira.
"Eu não sei cantar, mas foi engraçado fazer rap", lembra Ana Albuquerque. "Então canta lá um bocadinho", pede Alexandra. A mulher de 59 anos começa: "não pensem mal de mim, quanto mais não vale viver a vida assim...", logo juntam-se todos em coro, "sobe, sobe balão, sobe..."
"Já tivemos aqui pessoas com 92 anos, a Clotilde. Ela entrou com 89 e ficou três anos. Ainda está fina, mas já não lhe apetece fazer espetáculos e vir para tão longe, porque estamos longe do centro da cidade para ensaiar", diz Alexandra Espiridião.
O projeto também promove o convívio intergeracional. Estrela Espiridião e Lara, são as mais novas do grupo.
Lara explica que sempre acreditou que "toda a gente pode fazer tudo, aqui vi que isso era possível. Adoro isso, adoro esta troca e adoro participar nessa coisa que vocês dizem "ai eu não consigo" e, no final, conseguem, adoro festejar convosco." Uma das senhoras diz: "fazer coisas com velhos", a jovem de 32 anos completa: "fazer coisas com velhos e fazer coisas estando velhos, é nisso que sempre acreditei e que aprendo aqui."
Para Estrela, de 27 anos, é com a sua trupe sénior que se sente segura. "Gosto do facto de podermos rir e brincar, de haver espaço para sermos diferentes e descobrirmos essas coisas sobre nós que, às vezes, andamos a reprimir na nossa vida."
O quadro de cortiça, pendurado na parede do escritório de Manuel Diniz, exibe orgulhosamente fotos dos espetáculos da trupe.
Manuel é o poeta do grupo. Na sua capa amarela guarda cuidadosamente os textos que escreveu para e sobre a Trupe Sénior. Textos sobre ele, sobre as atividades que realizam, sobre os tempos da pandemia e sobre os próprios membros do grupo.
Dinizssauro
Eu sou o Dinizssauro
Como eu poucos já resta
Dizem que sou o poeta
O poeta da floresta
Eu já sou um velhinho
Ninguém tem pena de mim
Já me tiraram os ovários
E uma pedra no Rim
Estava mal dos intestinos
Piorava, dia a dia
Puseram-me de cú para o ar
Fizeram-me uma colonoscopia
Comecei a ficar cansado
Já pouco de casa saio
Dizem que é da coluna
Tenho Bicos de Papagaio
Tentei sair de casa
Com passinhos de velho
Dei logo uma trapaça
Fiz entorse no joelho
Tudo a mim me acontece
Aqui e em qualquer lado
Felizmente, não tenho Covid
Porque já fui vacinado
MD 21-08-2020
De todas as possibilidades que o circo lhe dá, "o único lugar aonde eu me sinto confortável é no mais baixo da hierarquia, que é o palhaço", revela Alexandra Espiridião. É assim que consegue "brincar" consigo própria e com alguns dos seus medos. "Essa dimensão "o palhaço" ajuda-me a rir-me das minhas certezas e das minhas convicções, que são muitas e muito fortes, e, ao mesmo tempo, a rir-me dos meus medos, daquilo que tenho mais receio e que quero fugir."
"O palhaço permite-nos isso, permite entrar nesses territórios e desmanchá-los. Faz de mim melhor pessoa quando me vou embora, fico um bocadinho melhor, mais feliz e em harmonia comigo mesma", assume a coordenadora com satisfação.
Estas cinco centenas representam os anos vividos por este grupo e não só. "551" é saber olhar para cada pessoa como singular. Este é um dos propósitos do projeto Trupe Sénior, é "aceitar cada indivíduo com a sua ferramenta expressiva, o seu corpo, a sua criatividade, todo o seu universo de vivências e de sonhos", sublinha Alexandra Espiridião.
"551" simboliza as pessoas que o circo transforma, a história de pessoas, novas ou velhas, que não querem deixar de ser crianças. Das pessoas que teimam em encontrarem-se a elas próprias, a mudar, a aprender, a rir, a não morrer e não serem esquecidas.
77 + 70 + 78 + 59 + 75 + 54 + 79 + 32 + 27 = 551
"Porque é que o circo é redondo e não quadrado?"
"O circo é redondo por uma razão muito simples. Num círculo, somos todos iguais. O responsável está no meio de todos, mas faz parte de todos, assim como todos fazem parte dele. Por isso, o círculo é um momento de partilha, é onde nos sentamos, conversamos e afinamos o que vamos fazer, é a união. A questão do "circo" e do "círculo" está intrínseca no chapitô. O público é igual a nós, somos todos iguais. Não há uns melhores que outros, cada um tem a sua função e todas as funções são importantes para que o coração [o chapitô] funcione", explica Rodolfo Correia.